A imprensa internacional, sobretudo germânica e anglo-saxónica, está agora inundada de artigos que exibem a Grécia como um país de gente desonesta, batoteiros, evasores fiscais, mentirosos, preguiçosos, etc. O tom foi estabelecido pela Senhora Merkel a semana passada quando disse que, para os gregos serem elegíveis para a ajuda alemã, tinham de se tornar mais honestos (cf. aqui). É uma ofensa generalizada ao povo grego e que, em breve, será lançada sobre os portugueses também. Na realidade é uma visão que os povos de tradição protestante possuem sobre os países mediterrânicos de tradição católica (incluindo a ortodoxa Grécia).
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A acusação tem que ver principalmente com a tradição de fuga aos impostos nos países de tradição católica. Antes de comentar a acusação, gostaria de lembrar que a Suíça, esse lendário paraíso fiscal, foi sempre, em primeiro lugar, uma conveniência germânica para fugir aos impostos; e que o Luxemburgo, dentro da UE, não é senão a mesma coisa. No mundo anglo-saxónico, as offshores, como as Ilhas Cayman e muitas outras, são ainda a mesma coisa. Quer dizer, fuga aos impostos institucionalizada e em grande escala é uma tradição protestante. Porém, quem tem a fama de fugir aos impostos são os povos de tradição católica. Esta pecha de os protestantes apontarem o dedo aos católicos por todos os pecados, quando eles de facto são bem piores, existe desde a Reforma religiosa, e os católicos nunca se sabem defender, ou não estão para isso, ou até têm prazer nisso. Como escrevia hoje um articulista americano acerca da Grécia, não é preciso dizer mal dos gregos, porque eles próprios dizem mal uns dos outros.
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É claro que os povos de tradição católica ou ortodoxa, como os portugueses, os italianos, os espanhóis, os gregos ou os brasileiros fogem aos impostos. Mas a sua fuga aos impostos não é em larga escala e muito menos institucionalizada, como no mundo protestante. É, na realidade, uma petty tax evasion, uma fuga fiscal de meninos, pequena, sem importância, e nada que se compare com aquela que se pratica institucionalmente nos países protestantes.
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É sobre esta pequena fuga fiscal que pretendo concentrar-me, e que dá lugar à grande economia informal que é típica dos países católicos. Ela ocorre caracteristicamente quando eu tenho de pagar ao meu amigo Francisco que dá explicações de Matemática ao meu filho. O Francisco, naturalmente, foi-me recomendado por um amigo comum. Passado um tempo, eu próprio me tornei amigo do Francisco, os nossos filhos também são amigos, para não falar nas nossas mulheres que já vão as duas à mesma modista. Quando chega a altura de lhe pagar as explicações, no valor de 100 euros, eu não exijo factura. Ao fazê-lo, eu acabo de ser conivente numa evasão fiscal por parte do Francisco. Como o Francisco é tributado em IRS à taxa de 30%, ele acaba de lesar o Fisco em 30 euros com a minha ajuda. Na realidade, nem ele nem eu nos consideramos pessoas desonestas por termos procedido assim. Mas a Senhora Merkel teria uma opinião muito diferente.
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A que se deve a diferença de opinião? A uma questão cultural, à diferente ponderação que a tradição católica, por oposição à tradição protestante, atribui à relação homem/comunidade. Como expliquei noutro lugar, a tradição protestante, na sua versão germânica (e socialista) valoriza a comunidade mais do que o homem. Pelo contrário, a tradição católica, dando embora grande importância à comunidade, acaba por colocar o homem acima dela.
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Voltando ao exemplo anterior, o homem de tradição católica raciocina assim. Ao poupar 30 euros em impostos ao Francisco, eu conferi um benefício a uma pessoa concreta, o meu amigo Francisco que está sempre pronto a dar uma ajuda aos meus filhos quando eles estão em dificuldades. Se, pelo contrário, eu tivesse exigido recibo, a comunidade receberia os 30 euros, através da administração fiscal. Porem, supondo a existência de 10 milhões de cidadãos, cada um deles iria beneficiar 0.0003 cêntimos desses 30 euros. Ora, 0.0003 cêntimos não é benefício nenhum. A atitude racional entre beneficiar o meu amigo Francisco em 30 euros, e não beneficiar ninguém (mais exactamente: beneficiar cada cidadão em 0.0003 cêntimos) é beneficiar o meu amigo Francisco, isto é, não lhe exigir recibo.
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Visto de outro ângulo, trata-se de mais uma manifestação do personalismo católico por oposição ao individualismo igualitarista protestante. Num caso, não exigindo recibo, eu favoreço uma pessoa concreta, o meu amigo Francisco, em 30 euros; noutro caso, exigindo recibo, eu favoreço uma massa anónima de pessoas que não conheço em 30 euros. Entre o Francisco e uma massa anónima de pessoas - a sociedade ou a comunidade -, um homem de tradição católica, que põe cada homem acima da sociedade, opta por favorecer o Francisco. Pelo contrário, a tradição protestante germânica, que pôe a sociedade acima do homem, opta por favorecer a sociedade.
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Qual destas tradições é a melhor? Eu deixo a resposta ao leitor, sob a forma de uma pergunta: Você prefere viver numa sociedade onde é considerado alguém suficientemente importante para ser valorizado de maneira que é mesmo superior à da sociedade; ou pelo contrário, prefere viver numa outra sociedade onde você é considerado um zé-ninguém? (Não esqueça que, precisamente, por na tradição protestante alemã, as pessoas serem consideradas zé-ninguens é que os alemães já mostraram serem capazes de matar pessoas em massa. Na realidade, que falta faz cá um zé-ninguém ou um milhão deles? Fazem-se outros rapidamente para os substituír.)
«Qual destas tradições é a melhor?»PA
ResponderEliminarPois, talvez nenhuma delas seja melhor que a outra, uma vez que assentam em culturas diferentes; e as culturas não são melhores ou piores, são o que são e devem simplesmente ser respeitadas.
Tal não significa, que não se deva obter receitas, para o estado as poder usar e as devolver sob forma de serviços à comunidade.
O cerne da questão está em saber compatibilizar a cultura com a forma de cobrança ou financiamento do estado.
Se na nossa cultura é dificil pedir um recibo ao Explicador, que entendo perfeitamente pelas razões aduzidas pelo PA, talvez não fosse má ideia permitir que assim continue, mas cobrando as receitas por atacado no final do ano, baseados nos valores a crédito das contas bancárias.
É assim em Angola, país aonde ninguem passa recibos... a solução encontrada, e que permite que continuem a não passar recibos, foi criar um imposto (imp. selo) de 1% sobre o volume de verbas efectivamente recebido em conta bancária.
Talvez assim possa continuar a amizade com Explicador e ao mesmo tempo financiar os serviços de estado, compatibilizando a cultura (católica) com a necessidade do estado.
RB
http://www.hup.harvard.edu/catalog.php?recid=30075&content=book
ResponderEliminarPA, não quer colocar aqui textos protestantes que fundamentem isso?
ResponderEliminarUm caso práctico sobre como podemos aprender com os bifes a fugir aos impostos... The scheme:
ResponderEliminarhttp://www.ionline.pt/conteudo/58375-ingleses-venderam-esquema-fraude-fiscal-em-portugal