24/04/10

Kung


O Público divulga hoje uma carta aberta do teólogo suíço Hans Kung dirigida aos bispos católicos e publicada no New York Times. Kung foi colega do Papa na Universidade de Tubingen e mais tarde incompatibilizou-se com ele. A carta é uma crítica cerrada ao Papa. A principal reivindicação de Kung é antiga e é dessa que me ocuparei aqui - a substituição da autoridade suprema e absoluta do Papa na governação da Igreja Católica pelo poder colegial dos bispos.
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A questão é muito importante. Primeiro, porque tornaria a Igreja Católica semelhante às igrejas protestantes. Na realidade, a única coisa que une as igrejas protestantes é a sua contestação à autoridade suprema e absoluta do Papa. Segundo, porque se trata do confronto entre dois regimes de governação - o autoritário e o democrático -, que teria reflexos imediatos na sociedade. Esta é uma questão política da máxima importância.
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Eu fico sempre um pouco desconcertado como a Igreja Católica reage a estas críticas - ou permanece em silêncio, ou as reacções são conduzidas dentro de discussões teológicas mais ou menos complexas e de difícil compreensão para o público interessado, mesmo o inteligente. Se o Catolicismo é uma doutrina racional - e se a Igreja Católica é a guardiã da razão -, como eu julgo que é, não deverão existir impedimentos a confrontar os críticos com argumento racional fundado.
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A Igreja Católica propõe-se defender e promover a vida humana como valor supremo. A questão é então a de saber que regime de governação de uma comunidade humana (seja a Igreja, o país ou a família) é mais favorável à defesa e promoção da vida humana - o autoritário ou o democrático?
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Antes de responder, eu gostaria de invocar duas situações com o intuito de vivicar a questão. Primeira, os casos de pedofilia na Igreja levantaram uma onda justificada de indignação exigindo ao Papa responsabilidades e que ele tomasse medidas para corrigir a situação. Isso ele tem vindo a fazer. Porém, se a Igreja fosse governada por uma assembleia de bispos, a quem é que se iriam exigir responsabilidades?
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Segunda, se Portugal tivesse sido governado por Salazar nos últimos quinze anos, há muito que ele teria sido deposto. Tinham-se-lhe exigido responsabilidades pela estagnação económica, o desemprego crescente, o estado das contas públicas. Porém, como o país foi governado pela maioria, pedem-se responsabilidades a quem?
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Quando no topo da hierarquia da governação existe um homem com poder absoluto, e a governação corre mal, é possível falar racionalmente com ele, chamá-lo à razão, exigir reformas, de maneira que a governação seja reorientada para o bem comum e a promoção da vida humana. No caso de ele não aceitar os argumentos da razão, ou não ser capaz de os pôr em prática, então, ele vai ter de saír, a bem ou a mal. Mas se a governação é feita por uma maioria, ou pelos seus representantes, pede-se responsabilidades a quem, fala-se com quem, exigem-se reformas a quem?
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A ninguém. É impossível, uma maioria não é uma pessoa, é uma entidade impessoal, não é possível falar racionalmente com ela. A razão não pode prevalecer. Nada garante que o curso da governação seja corrigido e reorientado para o bem comum. Pode mesmo acabar num grande desastre, na realidade, os grandes desastres do século XX foram todos provocados por governos democráticos. Impedida a razão de prevalecer, prevalece a a-racionalidade das massas.
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A solução proposta por Kung retiraria à Igreja o instrumento principal que a tem mantido por milénios - a supremacia da razão, pessoalizada no Papa. Seguir a solução de Kung era desfazer a Igreja Católica em muitas igrejas independentes no espaço de poucos anos, à semelhança do que acontece com as igrejas protestantes, as quais já são 33 mil.

1 comentário:

  1. Caro Pedro,
    (Aqui há menos ruído...)
    Introvigne reage à carta de Küng:
    http://www.cesnur.org/2010/mi-kung.html
    Weigle responde a Küng e espera réplica:
    http://www.firstthings.com/onthesquare/2010/04/an-open-letter-to-hans-kung
    Cumprimentos,

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